quarta-feira, 17 de junho de 2009

MUITO ALÉM DO "DATA VENIA

MUITO ALÉM DO "DATA VENIA

Por: Cícero SolimõesO que é um advogado? Para muitos, trata-se de alguém de gestos largos, voz possante, um anel grosso no dedo e especialista em latim. Para outros, o advogado é um sujeito desmesuradamente ambicioso, amigo dos poderosos, que se julga superior a todos os mortais e que fala demais. Há ainda quem pense que o advogado é alguém chato, que usa a expressão "data venia" ("com o devido consentimento") até para pedir um cafezinho e que, no Brasil, nunca vai preso.
É claro que esses são exemplos de estereótipos da profissão e nem todos os advogados são chatos ou inconvenientes. A verdade é que os cursos de Direito continuam entre os mais procurados pelos vestibulandos de todo o país, atraídos pelo irresistível charme de um dia defenderem uma causa em um tribunal. No entanto, a crescente procura pela profissão e as facilidades legais para a criação de cursos universitários no Brasil provocaram um outro tipo de problema: há muito advogado na praça.
"Temos que combater a profusão de jovens graduados sem critérios, diplomados em faculdades sem escrúpulos e sem compromisso com a qualidade", recomendou o presidente da Ordem dos Advogados em Santa Catarina (OAB/SC), Jeferson Kravchychyn, na abertura da 13a Conferência dos Advogados Catarinenses, realizada em junho deste ano em Joinville (SC).
Além do excesso de profissionais, muitos mal preparados para exercer o ofício, outra questão preocupa os advogados: a adaptação aos novos tempos. No mesmo encontro em Santa Catarina, o patrono do evento e ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sadi Lima, lembrou aos participantes que, se a categoria não se adaptar e não encontrar soluções urgentes para a resolução dos conflitos, os advogados ficarão "fora do mercado de trabalho, pois a coletividade procurará resolver seus próprios problemas sem intermediários."
Exagero? Não, pura realidade. Basta lembrar que ninguém mais aprende latim - até a missa católica deixou de ser rezada nesse idioma na década de 60 - e as mudanças de comportamento provocadas pelo avanço tecnológico exigem adaptações legais, só agora percebidas pelos estudiosos do Direito.
"O ensino jurídico no Brasil é uma vergonha", lamenta o professor das Faculdades Integradas Riopretense (Unirp), Renato de Paula Magri. Para ele, as mudanças curriculares têm de ser urgentes, porque o nível "baixíssimo" do ensino compromete a aplicação da lei. Magri cita como exemplo o ensino do Direito Ambiental, inexplicavelmente excluído dos currículos escolares. Outros temas que estão chamando a atenção dos estudiosos do Direito são o biodireito, a bioética e a mediação. Os especialistas são unânimes em afirmar que esses assuntos estão mudando o perfil tradicional do advogado.
Direito ambiental
Na prática, o desconhecimento sobre os direitos ambientais prejudica o bem-estar social e favorece o aparecimento de transgressores. Há alguns anos, por exemplo, a radialista Sílvia Calçada, de São Paulo, viu-se envolvida em uma causa sobre Direito Ambiental e orgulha-se de ter conseguido vencer a pendenga sem o auxílio de advogados. "Um posto de gasolina em frente à minha casa trocou as lâmpadas de mercúrio (brancas) pelas de vapor de sódio (amarelas)", relembra. "Senti-me incomodada porque a luz amarela forte tingia o meu jardim de dourado, ardia os meus olhos e agredia as minhas plantas." Sílvia entrou com uma ação no Juizado de Pequenas Causas alegando problemas de saúde e, para surpresa geral, ganhou a causa. "O juiz entendeu que aquela luz me provocava dor física, porque agredia meu sistema nervoso." O posto foi obrigado a trocar as lâmpadas.
Numa outra ocasião, Sílvia conseguiu que uma grande construtora retirasse um painel publicitário iluminado por fortes holofotes, instalado em frente à sua casa. "A iluminação era intensa e invadia a minha casa, impedindo-me de dormir com a janela aberta", relembra. Ela tentou, a princípio, resolver a questão de maneira amigável, mas sua reclamação foi recebida às gargalhadas no escritório da construtora. No entanto, o painel luminoso foi desativado logo depois que o caso foi citado numa reportagem sobre Direito Ambiental de uma revista de circulação nacional. "O Direito Ambiental é tutelar, ou seja, protege a pessoa mesmo que ela não queira", explica Sílvia, que virou especialista no assunto.
Esse tipo de problema acontece todos os dias, mas a falta de uma legislação específica impede que a sociedade reclame seus direitos e facilita a disseminação de ilegalidades. A empresária Andréa Pires, por exemplo, resolveu no grito um problema que atinge a maioria dos paulistanos, mas poucos sabem como resolver. Após uma noite em que ficou até de madrugada finalizando um projeto, Andréa foi acordada abruptamente às 8 horas da manhã com o alto-falante do vendedor de pamonhas. Ainda de pijama e com o cabelo desalinhado, ela saiu à rua e exigiu que o caminhão mudasse de lugar. O vendedor, assustado, obedeceu sem discutir.
Se tivesse recorrido a um tribunal, provavelmente Andréa teria conseguido impedir que o vendedor utilizasse o alto-falante. Ainda que os currículos dos cursos de Direito ignorem, já há estudos que comprovam que o barulho altera os batimentos cardíacos e, por isso, é capaz de mudar o comportamento das pessoas. Mesmo que o vendedor alegasse motivos de "sobrevivência", ainda assim ele teria de abandonar o alto-falante, porque a legislação comum reconhece que ninguém pode sobreviver à custa da saúde alheia.
Ao contrário do que se imagina, o barulho excessivo é proibido pela legislação em qualquer hora do dia - e não somente a partir das 22 horas. Basta que para isso o reclamante prove que está sendo incomodado em sua privacidade.
Bioética e Biodireito
Se o conhecimento sobre Direito Ambiental só agora começa a aparecer no Brasil, as noções de Bioética e Biodireito são quase que completamente ignoradas. A razão é que esses conceitos começaram a ser aplicados muito recentemente e, ainda assim, nos países desenvolvidos. O professor Magri, que também preside desde dezembro do ano passado a Comissão de Bioética e Biodireito da OAB, explica que esses estudos constituem um terreno novo, ainda pouco explorado no Brasil. A comissão da OAB, integrada por advogados e também por profissionais de outras áreas, tem por objetivo estudar essas questões para propor uma legislação específica.
A bioética é a abordagem dos problemas éticos ocasionados pelos avanços das ciências biológicas, bioquímicas e médicas. O assunto começou a ser estudado mais a fundo depois que 20 médicos foram condenados pelo Tribunal de Nuremberg - que julgou, no final da década de 40, os crimes de guerra dos nazistas na II Guerra Mundial - pela prática de experiências realizadas em seres humanos. A condenação desses médicos, sete deles à pena de morte, coincidiu com as primeiras recomendações internacionais sobre a ética nas pesquisas científicas em seres humanos. No entanto, o termo "bioética", no sentido de um conjunto de práticas pluridisciplinares para resolver questões éticas provocadas pelo avanço das ciências biomédicas, só passou a ser utilizado em 1971. A partir daí as pesquisas passaram a ter colaboração de profissionais de várias áreas do conhecimento - antropólogos, sociólogos, filósofos, teólogos, psicólogos e juristas, dentre outros. Os estudos jurídicos envolvendo a bioética proporcionaram o aparecimento de uma nova disciplina: o Biodireito.
O estudo do Biodireito exige atualização e discernimento sobre questões atualíssimas. Um exemplo são as técnicas de reprodução assistidas (uma mulher doa o óvulo e uma outra gera a criança em seu útero), nas quais ainda se discute quem é a mãe, quem é beneficiado por essas técnicas e até que ponto o congelamento dos embriões interfere no comportamento do ser humano gerado. "Recentemente, analisei um caso em que o funcionário do laboratório acidentalmente quebrou um tubo de ensaio que continha um pré-embrião", recorda Magri. "Felizmente, o caso foi resolvido amigavelmente, baseando-se na legislação comum."
Outras questões polêmicas que exigem atualização imediata da legislação envolvem a eutanásia (o estabelecimento de critérios para a legalização da "morte sem dor"), a eugenia (o controle social que pode melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, a física ou mentalmente - a questão é: até que ponto a eugenia passa a ser racismo?), a clonagem de seres humanos, a cirurgia de adequação de sexo de transexuais, o aborto, a esterilização, as técnicas alternativas de reprodução, o acompanhamento do suicídio, a comercialização e doação de órgãos e o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Essas questões estão sendo estudadas pela comissão da OAB, mas ainda se ressentem de um debate amplo da sociedade. A filósofa portuguesa especializada em Bioética, Maria do Céu Patráo Neves, por exemplo, afirma numa recente entrevista à revista Medicina que está preocupada com a proximidade entre o Biodireito e a Bioética. Ela teme que cada país tenha suas próprias normas em relação a questões como transplantes ou reprodução assistida, o que permitiria a proliferação do que ela chama de "turismo bioético". Maria do Céu cita como exemplo a Itália, país onde é permitido que mulheres na pós-menopausa reproduzam, o que tem levado muitas mulheres nessa condição a procurar aquele país.
Mediação
O conceito de mediação apareceu nos Estados Unidos, no início da década de 70. A princípio, o objetivo era renovar o acesso à Justiça nas questões relativas às pequenas causas, basicamente no que diz respeito aos direitos do consumidor. A idéia de um mediador que pudesse atuar como um "negociador" entre as partes em litígio mostrou-se extremamente produtiva, principalmente no chamado Direito de Família. O conceito de mediação já se difundiu nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão e China. Em outros países, principalmente europeus, a figura do mediador está se mostrando vital para resolver conflitos não só familiares como em todas as áreas que envolvam desentendimentos humanos. Os adeptos da mediação perceberam que casais que se separam ou que disputam a guarda do filho, por exemplo, estão com o estado emocional alterado e raramente reúnem condições psicológicas para poder discernir o que é melhor para todos. O sentimento natural é de vingança.
"Mediar é dar dignidade às pessoas em litígio", define Águida Arruda Barbosa, advogada de São Paulo que há três anos dedica-se, juntamente com duas sócias psicoterapeutas, a dar aulas de mediação para profissionais de todas as áreas. Segundo Águida, o princípio básico de seu curso é dar condições para que seus alunos possam compreender melhor os problemas dos outros. "As pessoas em conflito têm de ser escutadas", resume, "por isso eu ensino meus alunos a ouvir."
O mediador não precisa ser advogado. É conveniente, porém, que ele tenha conhecimentos básicos de psicologia e seja sensato ao avaliar um problema. "Não existe legislação específica para a figura do mediador no Brasil", explica a advogada Lia Justiniano dos Santos. "O mediador tenta ultrapassar as dificuldades pessoais dos indivíduos em conflito, dando-lhes oportunidade de readquirir a segurança." Lia tem 30 anos de experiência como advogada e faz o curso de mediação há dois semestres. "O curso proporcionou uma ampliação de minha atuação profissional", resume Lia. "O intercâmbio de conhecimentos com profissionais de outras áreas me abriu novas perspectivas profissionais."
A deputada federal Zulaiê Cobra Ribeiro (PSDB-SP) tem um projeto para a legalização do mediador no Brasil. O projeto, porém, está engavetado há anos e a perspectiva, a depender da disposição do Congresso, é que fique mofando mais um bom tempo.


fonte: Revista Vencer
endereço eletrônico: http://www.vencer.com.br/materiaCompleta.php?id=19
acesso em 17/06/2009

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